Em 1º de agosto de 2025, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu decisão relevante no caso Royal Football Club Seraing vs. FIFA e outros (Processo C-600/23), reforçando que, quando a arbitragem é imposta de forma unilateral por entidades esportivas internacionais, as decisões resultantes não podem ficar imunes a uma revisão judicial efetiva nos Estados-Membros, especialmente para verificar sua conformidade com a ordem pública da UE e com direitos garantidos pelo direito europeu.
O pano de fundo foi a aplicação, pela FIFA, de sanções a um clube belga por suposta violação das regras que proíbem a participação de terceiros nos direitos econômicos de atletas. O caso percorreu a via arbitral do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS/CAS) e foi confirmado pelo Tribunal Federal Suíço. Ao tentar rediscutir o mérito nos tribunais belgas, o clube se deparou com a barreira da coisa julgada, reconhecida à decisão arbitral estrangeira.
O TJUE, entretanto, entendeu que a aplicação automática dessa autoridade de coisa julgada pode ser incompatível com o dever, imposto pelo artigo 19.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia e pelo artigo 47.º da Carta de Direitos Fundamentais, de assegurar tutela jurisdicional efetiva. Em síntese, se a decisão arbitral não passou pelo crivo de um tribunal apto a submeter questões ao TJUE e envolve matéria de direito europeu, deve haver possibilidade de revisão judicial interna (ainda que limitada) para verificar eventual afronta à ordem pública da União.
E no Brasil?
No contexto brasileiro, a Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF, exerce jurisdição compulsória para diversos litígios desportivos envolvendo relações entre atletas, técnicos, clubes e intermediários. Com base no RCNRD, a jurisprudência da Câmara tem caminhado no sentido de que determinadas matérias são de competência obrigatória da CNRD, independentemente da existência de convenção arbitral entre as partes.
Esse desenho institucional gera debate sobre a extensão da coisa julgada das decisões da CNRD ou, em caso de recurso, do CBMA (art. 54, § 2º do RCNRD), sobretudo quando envolvem temas que transcendem o direito desportivo estrito, como disputas contratuais com impacto em normas de ordem pública.
Com base no raciocínio do TJUE, pode-se cogitar que, caso uma decisão da CNRD/CBMA envolvesse aplicação de normas que tocam direitos fundamentais, regras de concorrência ou princípios de ordem pública previstos na Constituição Federal ou em tratados internacionais incorporados ao Brasil, poderia haver espaço para questionar se a jurisdição estatal não deveria exercer algum grau de controle judicial efetivo.
Não se trata de afirmar que o entendimento europeu se aplica ao Brasil, já que o sistema jurídico brasileiro segue lógica própria, em que a arbitragem é regulada pela Lei nº 9.307/1996. Contudo, o precedente europeu sugere que, quando a arbitragem não é fruto de livre convenção entre as partes, mas sim de imposição regulatória, a limitação absoluta ao reexame judicial pode ser vista com cautela.
Impactos potenciais e pontos de atenção
- Caráter compulsório: Assim como no caso europeu, em certos casos, a jurisdição da CNRD não decorre de escolha livre entre as partes, mas de imposição normativa da entidade reguladora.
- Ordem pública nacional: No Brasil, o art. 32, VIII, da Lei de Arbitragem já permite a anulação de sentença arbitral que viole determinados princípios.
- Limites da coisa julgada: A aplicação da coisa julgada arbitral pode, em tese, ser relativizada em casos que envolvam matérias que o Judiciário brasileiro considere insuscetíveis de renúncia ou transação.
- Diálogo internacional: Ainda que a decisão do TJUE não seja vinculante no Brasil, ela pode servir como referência em discussões sobre compatibilidade entre arbitragem compulsória e garantia de acesso à justiça.
Considerações finais
A decisão europeia não invalida a arbitragem no esporte, mas alerta para a importância de preservar mecanismos de controle judicial mínimo, garantindo que decisões arbitrais impostas por regulamentos de federações sejam compatíveis com direitos fundamentais e com a ordem pública.
No Brasil, embora o sistema jurídico já preveja hipóteses de intervenção judicial sobre sentenças arbitrais, o caso do TJUE pode inspirar reflexões sobre se, e até que ponto, a coisa julgada das decisões da CNRD/CMBA poderia ser flexibilizada para assegurar tutela jurisdicional efetiva, especialmente em matérias que ultrapassem o núcleo estritamente desportivo.
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