A recente controvérsia envolvendo a possível saída antecipada de Gerson do Flamengo reacendeu um importante debate jurídico sobre a competência para julgamento de litígios contratuais no âmbito do futebol brasileiro. Em que pese ainda não haver uma judicialização fática acerca da demanda, alguns especialistas, ao analisar o caso, levantaram a possibilidade de escolha entre Justiça comum e a Câmara Nacional de Disputas da CBF, a CNRD, a depender da existência de cláusula compromissória de arbitragem.
Conforme dispõe os artigos 2º e 3º do Regulamento da CNRD (RCNRD), atletas profissionais e clubes são jurisdicionados da Câmara, de modo que ela possui competência para conhecer de litígios entre tais jurisdicionados que envolvam o vínculo desportivo, a manutenção da estabilidade contratual ou contratos de imagem. Essa competência decorre do fato de que a CNRD não é uma câmara arbitral convencional, mas sim um órgão jurisdicional especializado no contexto associativo do futebol, legitimado pela autonomia conferida às entidades desportivas pela legislação brasileira.
Nota-se, portanto, que não se exige a existência de cláusula compromissória de arbitragem para que a CNRD conheça da controvérsia. O simples enquadramento da matéria no rol previsto pelo RCNRD é suficiente para que o órgão aprecie e julgue o litígio. Trata-se de uma característica que distingue a CNRD das câmaras arbitrais comuns, cuja atuação depende exclusivamente da convenção de arbitragem firmada entre as partes.
Este vem sendo o entendimento da Câmara:
“COMPETÊNCIA DA CNRD DIANTE DE CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO. ADERÊNCIA DO CLUBE AOS ESTATUTOS E REGULAMENTOS DA FIFA E DA CBF. A existência de cláusula de eleição de foro deve ser interpretada restritivamente como limitação em razão do território e não em razão da matéria. Impossibilidade de a cláusula de eleição de foro afastar normas estatutárias e regulamentares ou a competência sancionadora dos órgãos jurisdicionais associativos. Efeitos da decisão restritos à esfera associativa” (Processo CNRD nº 2019/O/334, Rel. Raphael Donato, v.u., j. 20.6.2022).
Essa prerrogativa normativa reforça a competência da CNRD para atuar de forma autônoma e especializada em conflitos contratuais dentro do sistema esportivo, conferindo previsibilidade e uniformidade às decisões proferidas. A centralização desses litígios na CNRD também tem o efeito de reduzir a sobrecarga do Judiciário e evitar decisões contraditórias.
É certo, todavia, que a eventual ausência de cláusula compromissória no contrato entre Flamengo e Gerson implicaria apenas uma competência mitigada da CNRD. Nessas hipóteses, as decisões da Câmara não teriam força de sentença arbitral, não possuindo, portanto, condão de títulos executivos extrajudiciais, e só produziriam efeitos dentro do sistema associativo do futebol,como multas, suspensões e até mesmo desvinculação ou proibição de atuar em qualquer atividade relacionada ao futebol.
Ainda assim, essa competência mitigada não invalida a atuação da CNRD, especialmente quando a controvérsia envolve clubes e atletas, conforme previsto no artigo 2º do RCNRD. A possibilidade de aplicação de sanções administrativas constitui importante instrumento coercitivo, desestimulando o descumprimento de obrigações e conferindo efetividade à jurisdição esportiva.
Portanto, no caso Gerson, mesmo que não haja cláusula compromissória expressa no contrato de imagem firmado entre o atleta e o clube, a CNRD se mantém competente para julgar a demanda, nos termos dos artigos 2º, 3º e 12 do seu Regulamento. A busca direta pela Justiça comum, nessas condições, deve ser vista com cautela, sob pena de desprestigiar o sistema associativo e comprometer a eficácia de seus mecanismos de resolução de disputas.
A valorização da CNRD como foro especializado é essencial para a consolidação de um ambiente jurídico estável, previsível e funcional no futebol brasileiro.
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