1. Resumo do caso
No fim de maio, noticiou-se [1] que a FIFA teria enviado um ofício à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) questionando a atuação do empresário Diego Fernandes na intermediação da contratação de Carlo Ancelotti pela Seleção Brasileira. A notificação se deu pelo fato de que Diego não possui licença para atuar como agente de futebol e, portanto, não poderia ter intermediado a transação.
Em nota, Diego Fernandes admitiu não ser registrado como agente, conquanto tenha atuado como consultor na contratação. Segundo o empresário, em razão do curto prazo em que a negociação foi realizada, gerou-se uma incompatibilidade com o processo para licenciamento junto à FIFA. Contudo, com a conclusão da negociação, dará início ao processo para se regularizar como agente para receber os valores referentes à intermediação.
A notificação enviada se deu por conta de uma possível violação do artigo 11 do FIFA Football Agents Regulations, o FFAR. O Artigo estabelece que “somente um Agente de Futebol pode realizar Serviços de Agente de Futebol”[2]. Dessa forma, ao negociar o contrato por meio de um profissional que não possui licença de agente, a CBF estaria infringindo o regulamento.
2. Como chegamos ao FFAR?
De acordo com o FIFA Report: Intermediaries in International Transfers 2022, após a queda observada em 2020 (USD 497,5 milhões) e uma leve recuperação em 2021 (USD 501,2 milhões), os valores pagos pelos clubes a título de comissões aos intermediários retornaram aos patamares anteriores à pandemia em 2022 (USD 623,2 milhões) (FIFA, 2024).
Esse crescimento gradual nos valores despendidos com intermediários pode ser interpretado como uma consequência direta da adoção do Regulations on Working with Intermediaries (RWI). A partir de 2015, a FIFA optou por extinguir sua relação direta com os intermediários, abandonando o modelo de licenciamento e transferindo às associações nacionais a responsabilidade de monitorar a atividade, ao mesmo tempo em que instituiu apenas requisitos mínimos para o exercício da função (ALOBEIDLI, 2015). Tal medida abriu caminho para que o mercado de intermediação se desenvolvesse com maior autonomia econômica.
Contudo, não demorou para que a FIFA demonstrasse preocupações com os rumos da atividade. Já em 2018, o então Diretor Jurídico e de Conformidade da entidade enfatizava a necessidade de uma nova regulação capaz de equilibrar os interesses dos clubes e dos agentes (SIQUEIRA, 2023). Nesse cenário, o FFAR surgiu como uma tentativa de correção dos efeitos adversos gerados pelo RWI, especialmente no que diz respeito à descentralização normativa e ao enfraquecimento da supervisão da FIFA sobre o setor (SIQUEIRA, 2023).
Portanto, com a publicação do FFAR, a FIFA não apenas retomou o controle normativo sobre a atividade de intermediação, como também reintegrou formalmente os agentes ao sistema oficial de transferências internacionais de jogadores e treinadores. Essa reintegração reforça a condição dos agentes como sujeitos jurisdicionados à entidade máxima do futebol, sujeitando-os a padrões éticos, profissionais e regulatórios uniformes, válidos em âmbito global.
Ao centralizar novamente a regulamentação da atividade – após quase uma década de descentralização iniciada com o Regulations on Working with Intermediaries (RWI) de 2015 – a FIFA buscou corrigir distorções que haviam surgido em decorrência da liberalização excessiva do mercado, incluindo o crescimento desmedido das comissões pagas. Esse movimento de reenquadramento surtiu efeitos práticos imediatos: em 2024, primeiro ano de vigência plena do FFAR, observou-se uma queda substancial nos valores pagos a título de comissão, representando uma redução de cerca de USD 180 milhões em relação ao recorde histórico registrado em 2023[3]. Tal retração evidencia que a nova regulamentação teve impacto direto na contenção dos custos com intermediação e marca uma inflexão importante na dinâmica econômica do setor.
3. O que diz o FFAR sobre o tema
Para a FIFA, o Agente de Futebol é a pessoa natural licenciada por ela para prestar os Serviços de Agente de Futebol. Tais Serviços, por sua vez, são descritos como prestados para ou em nome de um Cliente, “incluindo qualquer negociação, comunicação relacionada ou preparatória a esses serviços, ou qualquer outra atividade correlata, com o propósito, objetivo e/ou intenção de concluir uma Transação”.
Nota-se, portanto, que o Regulamento é inequívoco ao dispor que apenas agentes devidamente licenciados podem atuar na intermediação de negociações envolvendo atletas e treinadores. Todavia, a obtenção da licença não é um procedimento meramente formal, uma vez que o FFAR impõe uma série de requisitos de elegibilidade (art. 5), incluindo a aprovação em exame específico que abrange as normas e regulamentos do futebol internacional (art. 6.4), além do pagamento de uma taxa anual de licenciamento para o exercício regular da atividade (art. 7). Tais exigências visam assegurar a qualificação técnica e a integridade dos profissionais que operam em um mercado altamente sensível e globalizado[4].
No caso em tela, é necessário atentar-se aos requisitos de elegibilidade dispostos pelo art. 5 do FFAR, uma vez que ele estabelece que para solicitar a licença de Agente de Futebol, o requerente deve: “nunca ter, nos vinte e quatro meses anteriores à apresentação do pedido de licença, praticado Serviços de Agente de Futebol sem a licença exigida”. Assim, caso fique comprovado que Diego atuou como intermediário da negociação envolvendo o técnico Ancelotti, este deverá aguardar ao menos dois anos antes de solicitar uma licença de Agente de Futebol[5].
Por outro lado, a CBF, ao utilizar os serviços de intermediário não licenciado pela FIFA, descumpre o dever de cuidado estabelecido no art. 18, 1., C), do FFAR, uma vez que o cliente deve “certificar-se de que um Agente de Futebol está devidamente licenciado pela FIFA antes de assinar o Contrato de Representação relevante”. Ademais, também infringe o disposto nos itens 2., a) e h) do mesmo artigo, porquanto:
“Os clientes (e seus funcionários, quando aplicável) não podem se envolver ou tentar se envolver nas seguintes condutas:
a) Contratar ou nomear uma pessoa não licenciada para realizar Serviços de Agente de Futebol;
(…)
h) Deixar de relatar imediatamente qualquer violação deste Regulamento à FIFA”.
Dessa forma, em que pese Diego não ser filiado à FIFA e, portanto, não estar sujeito às sanções administrativas impostas pela Federação, eventuais violações do FFAR atribuídas à CBF poderão ensejar sanções, uma vez que a jurisdição do Comitê Disciplinar da FIFA se aplica a “qualquer conduta relacionada com um Acordo de Representação com dimensão internacional”, nos termos do art. 21, 1., a), do Regulamento.
4. Conclusão
O caso envolvendo a contratação de Carlo Ancelotti pela Seleção Brasileira e a atuação de um agente não licenciado lança luz sobre os desafios de implementação e fiscalização do FFAR. A situação evidencia que, mesmo após a entrada em vigor do novo regulamento, ainda existem lacunas na sua aplicação prática, especialmente em países cujas federações nacionais enfrentam entraves jurídicos locais para internalizar plenamente as diretrizes internacionais.
A atuação de intermediários sem licença, além de comprometer a integridade e a transparência do sistema de transferências, representa uma violação direta às normas da FIFA e fragiliza o esforço regulatório de profissionalização do mercado. No caso específico de Diego Fernandes, a possível prestação de serviços de agenciamento sem a devida licença pode impedir sua habilitação futura como agente, o que reforça o caráter rigoroso e preventivo do FFAR.
Do ponto de vista institucional, a eventual responsabilização da CBF por permitir a atuação de um agente não licenciado poderá representar importante precedente, contribuindo para consolidar o entendimento de que o sistema federativo da FIFA impõe o cumprimento uniforme dos seus regulamentos, independentemente da autonomia normativa de cada federação nacional.
Em última análise, o episódio reafirma a necessidade de maior alinhamento entre os entes nacionais e a FIFA quanto à regulação da atividade de intermediação, sob pena de comprometer os objetivos de transparência, ética e segurança jurídica que fundamentam o FFAR.
Crédito Imagem: Index Conectada Assessoria
[1]https://www.espn.com.br/futebol/selecao-brasileira/artigo/_/id/15248198/fifa-questiona-cbf-comissao-paga-intermediario-negociacao-ancelotti
[2] FFAR
[3] Em 2023, ano de entrada em vigor do FFAR, o montante global desembolsado pelos clubes a título de comissões a agentes de futebol atingiu seu ápice histórico, totalizando USD 889,5 milhões. No entanto, no ano seguinte, observou-se uma retração significativa desses valores, com as comissões somando USD 709,6 milhões em 2024. Esse recuo expressivo indica, de forma inequívoca, que o FFAR exerceu um efeito concreto de contenção sobre a escalada dos pagamentos realizados a intermediários no mercado de transferências.
[4] Ressalte-se, contudo, que a versão brasileira do FFAR – o Regulamento Nacional de Intermediários (RNA) – encontra-se, atualmente, com sua eficácia suspensa por decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que entendeu pela impossibilidade de a CBF exigir licença prévia para o exercício da atividade de agente no território nacional. Ainda assim, no caso específico da negociação envolvendo o treinador Carlo Ancelotti, trata-se de uma operação de natureza internacional, o que atrai, necessariamente, a aplicação direta do FFAR. Isso porque a Confederação Brasileira de Futebol é entidade filiada à FIFA, organismo internacional responsável pela administração e regulamentação do futebol em âmbito global, e, como tal, integra o sistema federativo estabelecido pela entidade, o qual impõe a observância obrigatória dos regulamentos da FIFA nas transferências internacionais de atletas e treinadores.
[5] Nesse sentido, as seguintes decisões da secretaria geral da FIFA: 020698_929625; 160563_16052025; 052514_210525; 052581_14052025. Disponíveis em: https://inside.fifa.com/transfer-system/agents/fifa-general-secretariat-decisions
REFERÊNCIAS
ALOBEIDLI, Saleh. The FIFA Regulations on Working with Intermediaries (RWI) – Historical Overview. Football Legal, 30 de junho de 2015. Disponível em: https://www.football-legal.com/content/the-fifa-regulations-on-working-with-intermediaries-rwihistorical-overview
FIFA. FIFA Report: Intermediaries in Internacional Transfers 2024. Zurique, Suiça: dezembro de 2024.
SIQUEIRA, João Marcos Guimarães. O Novo Regulamento de Agentes da FIFA e a Reação do Mercado Internacional. IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, 03 de março de 2023. Disponível em: https://ibdd.com.br/o-novo-regulamento-de-agentes-da-fifa-e-areacao-do-mercado-internacional/?v=19d3326f3137#_ftn2